ESPECIAL JUSTIÇA – Processo digital

Informatização da Justiça exige empenho e cautela

Não é de hoje o grave problema da ineficiência da Justiça. Em 1895, o austríaco Franz Klein já propugnava a diminuição dos formalismos processuais, bem como as idéias da economicidade, da celeridade e do acesso dos mais pobres à Justiça, com o nobre intuito de melhorar a prestação jurisdicional. Aliás, essas propostas foram incorporadas ao Código Processual Austríaco (ZPC — Zivilprozessordnung) daquele mesmo ano e muitos países, depois, copiaram seus dispositivos.

Já nos anos 60[1], Mauro Cappelletti liderou um significativo movimento para diagnosticar as causas da ineficiência da Justiça[2]. O conjunto desse trabalho é conhecido como Projeto Florença e os principais resultados foram expostos na obra Acesso à Justiça[3]. Nesse livro, constata-se a preocupação dos autores com o problema do acesso dos indivíduos mais pobres ao Poder Judiciário, à respectiva representatividade, por meio de advogados públicos ou privados, bem como a uma decisão justa e efetiva.

Verifica-se, também, o incentivo à adoção de políticas públicas e judiciárias voltadas para a tutela dos direitos difusos e coletivos, assim como o estímulo à solução alternativa de conflitos e à reestruturação (através da especialização das varas e funções) ou criação de novos tribunais (juizados de pequenas causas, por exemplo).

A Justiça brasileira também sofre, há bastante tempo, com o problema da ineficiência, especialmente na questão do acesso à Justiça, tanto no que diz respeito à representatividade e aos custos, como no que tange ao tempo de duração do processo. Assim é que, no Brasil, podemos elencar, como exemplo da influência do Projeto Florença[4], na busca de maior amparo aos direitos materiais e de maior efetividade aos direitos processuais, a edição das Leis 7.347/85 (Ação Civil Pública), 9.099/95 (Juizados Especiais Estaduais), 0.259/01 (Juizados Especiais Federais) e 9.307/96 (Arbitragem).

Como é cediço, apesar de úteis em vários aspectos, tais reformas não operaram os resultados esperados e o aparelho judiciário brasileiro permaneceu acometido pelos antigos e por novos defeitos. Nos últimos anos, com os fins de eliminar os entraves burocráticos[5] do seu respectivo código e de conferir uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva, o processo civil pátrio sofreu verdadeira onda renovatória legislativa.

Entre as reformas mais recentes, destacam-se aquelas oriundas da Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, e do Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano, como as Leis 11.232/05 (Cumprimento de sentença), 11.382/06 (Execução de título extrajudicial), 11.417/06 (Súmula Vinculante), 11.418/06 (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário), 11.341/06 (Demonstração da divergência no Recurso Especial), 11.419/06 (Informatização do processo judicial), 11.441/07 (Inventário, partilha, separação consensual e divórcio por via administrativa) e 11.448/07 (Legitimidade da Defensoria Pública para a ação civil pública).

A mencionada Lei 11.419/06, que trata da informatização do processo judicial, entrou em vigor no dia 20 de março de 2007, alterando alguns artigos do Código de Processo Civil e regulamentando, de maneira geral, o processo eletrônico. Esse novo diploma abarca 22 artigos e já provoca muita polêmica no meio jurídico, o que não é nenhuma surpresa. Afinal, essa lei estabelece uma considerável mudança de paradigmas aos operadores do processo judicial, na medida em que regulamenta o uso da assinatura digital nos tribunais, os prazos até meia-noite, a intimação e a citação por meio eletrônico, o Diário de Justiça eletrônico, entre outros assuntos novos e instigantes.

A proposta legislativa de informatização do processo judicial colimava aprimorar a eficácia dos procedimentos judiciais, “principalmente no que diz respeito à sua celeridade e à economia, que beneficiará tanto o poder público, que arca com o funcionamento da máquina judiciária, quanto à parte, no que diz respeito aos custos processuais”[6].

Portanto, o que se percebe com clareza é o intuito de amenizar o problema da ineficiência da Justiça, elevando a qualidade e acelerando a prestação jurisdicional[7], tornando-a, simultaneamente, menos dispendiosa às partes, aos operadores do Direito e ao próprio Estado.

Esses resultados podem ser alcançados? Sim, podem, mas é preciso cautela[8], a uma, porque se trata de novidade que transformará o meio de tramitação do processo e, por isso, a transição deverá ser feita a passos curtos; e, a duas, porque alguns princípios processuais sofrerão reflexo direto da nova sistemática, o que reclama a investigação desse impacto tecnológico, para evitar um retrocesso na constante busca pelo processo justo.

Os princípios processuais

Princípio[9] é um ponto de partida. Os valores jurídicos, tais como a Justiça, a dignidade da pessoa humana e a eqüidade, por exemplo, são idéias abstratas, supraconstitucionais, que informam e permeiam todo o ordenamento jurídico, mas não se traduzem em linguagem normativa. A seu turno, os princípios representam o primeiro estágio de concretização dos valores jurídicos a que se vinculam. Como afirma Ricardo Lobo Torres, os princípios, sendo enunciados genéricos que quase sempre se expressam em linguagem constitucional ou legal, estão a meio passo entre os valores e as normas na escala de concretização do direito e com eles não se confundem.[10]

Há renomados autores[11] que classificam os princípios e as regras como espécies do gênero norma, sendo que a diferença reside no âmbito de aplicação de cada um: a regra se aplica a aspectos pontuais e os princípios, a situações mais elásticas. Citando Robert Alexy, Luiz Guilherme Marinoni[12] ressalta que um mesmo princípio pode valer para um caso e não valer para outro, o que não significa que, nesta hipótese, tenha perdido sua vigência. Além disso, em determinadas circunstâncias, dois princípios podem entrar em choque, o que opera a aplicação do princípio da proporcionalidade, para definir aquele que vai se soprepor no caso concreto. De qualquer forma, o princípio não aplicado também não perde suas força e vigência.

No Brasil, os princípios possuem uma função normativa plena, por força do disposto no parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Desse modo, a falta de norma infraconstitucional que regulamente o gozo ou exercício de direitos ou garantias fundamentais não pode servir de pretexto para a sua denegação[13].

Existem princípios gerais no ordenamento jurídico brasileiro, mas também existem princípios específicos para cada ramo da ciência jurídica. O direito processual civil dispõe de um rol extenso de princípios, alguns com aplicação restrita e outros com desdobramento até em outras áreas.

No que respeita aos princípios processuais, Luiz Fux salienta que os princípios fundamentais do processo, assim como os das demais ciências, caracterizam o sistema legal adotado por um determinado país, revelando-lhe a linha juspolítica e filosófica. Esses princípios são extraídos das regras processuais como um todo e seus cânones influenciam na solução de inúmeras questões legisladas ou não, quer na exegese emprestada a determinado dispositivo, quer na supressão de uma lacuna legal. Entre nós, os princípios do processo, como, v.g., o da igualdade das partes, o do contraditório, o do devido processo legal, seguem o espírito democrático que norteia a nossa lei maior e são diretrizes para a interpretação das normas processuais.[14]

Nessa mesma linha, Candido Rangel Dinamarco[15] sublinha que o zelo aos princípios evita a interpretação jurídica cega, no labirinto de normas e atos processuais. Assim, os princípios funcionam como um porto seguro, não somente de partida, mas também de instrumento de esclarecimento, especialmente para se traçar o rumo da aplicação normativa a uma determinada situação concreta, seja ela regulamentada, ou não, por uma regra específica.

Esses princípios também são considerados como garantias processuais, as quais devem ser respeitadas e tuteladas, com o fim de se disponibilizar um processo justo às partes e aos operadores do Direito, na atividade jurisdicional. Leonardo Greco[16] desenvolveu um estudo em que essas garantias estão divididas em individuais[17] e estruturais[18], sendo que grande parte delas corresponde justamente a princípios constitucionais processuais, que informam o ideal do processo justo[19]. Por conseguinte, a violação a esses princípios consiste em grave retrocesso na linha evolutiva do processo civil contemporâneo.

Importa destacar que, muitas vezes, são as próprias reformas processuais que violam os princípios. Como é cediço, reformas legislativas costumam tentar resolver um problema pontual (e até resolvem). Mas, pela falta de investigação prévia de seus efeitos, criam uma outra barreira à efetividade processual e, em algumas circunstâncias, acabam por violar princípios processuais. Nesse contexto, José Carlos Barbosa Moreira[20] propõe que as reformas da lei processual sejam precedidas do diagnóstico dos males que se quer combater e das causas que o geram ou alimentam, para evitar que as incessantes reformas, ainda que resolvam um problema aqui, criem outro acolá.

A Lei 11.419/06 procurou otimizar a tramitação do processo, prometendo a diminuição da burocracia cartorária e do tempo de duração da ação; a redução dos custos de acompanhamento de uma causa; e uma maior acessibilidade aos autos, entre outras vantagens.

Contudo, na esteira da proposta de José Carlos Barbosa Moreira, não se deve acreditar cegamente nesses resultados. Antes, é preciso avaliar o impacto que a informatização judicial poderá causar a determinados princípios do processo civil, como medida de aprimorar as conseqüências benéficas do novo sistema e evitar os seus efeitos maléficos.

A presente análise se restringe a apenas alguns princípios do processo civil, uma vez que nem todos sofrem reflexo direto da informatização judicial.

O impacto da informatização judicial sobre os princípios do processo cilvil

A Lei 11.419/06 não operou uma transformação radical no Código de Processo Civil, tendo em vista que os prazos, as ações, os recursos, os procedimentos, etc., permanecem os mesmos[21]. Em verdade, esse diploma legal encaixou a possibilidade do uso do meio eletrônico em todos os artigos em que o seu uso é possível, além de ter regulamentado, de forma geral, o processo total ou parcialmente eletrônico.

Assim, a informatização judicial não repercutirá diretamente sobre a maioria dos princípios do processo civil. Todavia, é inegável que, em razão das características e necessidades do uso do meio eletrônico, alguns princípios serão diretamente atingidos, positiva ou negativamente, tudo a depender dos cuidados na implantação e na operacionalização do novo sistema.

O impacto da informatização judicial sobre o princípio do acesso à justiça

A expressão acesso à Justiça é vaga e comporta diferentes significados, até porque o termo Justiça possui diferentes acepções, como, por exemplo, o ideal de dar a cada um o que é seu; uma ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano; o Poder Judiciário, etc.. O princípio do acesso à Justiça tem um sentido muito mais abrangente do que a simples possibilidade de um indivíduo acessar o Poder Judiciário e propor uma ação ou então se defender. Consoante o entendimento doutrinário hodierno, a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa [22].

A expressão “acesso à ordem jurídica justa” vem sendo usada para definir o princípio do acesso à Justiça. Cumpre ressaltar que essa perspectiva axiológica não se limita apenas a garantir meios idôneos e com custos módicos àquele que propõe e àquele que se defende na demanda. Atualmente, o ordenamento jurídico e os operadores do Direito devem promover e preservar uma série de garantias e princípios que, em conjunto, constroem essa ordem jurídica justa.

Na obra Teoria Geral do Processo[23], Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco, eméritos processualistas brasileiros, apontam a utilidade das decisões e o ingresso em juízo como alguns dos pontos sensíveis do acesso à Justiça. Na mesma linha, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[24] indica os princípios da utilidade e da acessibilidade como dois dos princípios que informam o acesso à Justiça. Faz-se menção a esses dois princípios, uma vez que a informatização do processo vai gerar impacto sobre eles, repercutindo efeitos diretos sobre o princípio do acesso à Justiça.

O princípio da utilidade exprime que todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa idéia era defendida por Giuseppe Chiovenda, para quem “Il processo deve dar per quanto è possible praticamente a chi ha um diritto tutto quello e proprio quello ch’egli há diritto di conseguire”[25]. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[26] complementa esse conceito, afirmando que a entrega desse direito deve se dar da forma mais rápida e proveitosa possível.

No contexto do princípio da utilidade, a informatização do processo judicial poderá ter efeitos muito benéficos, em razão de algumas experiências prévias, como, por exemplo, a penhora online de numerário em contas bancárias. Desde 2002, os tribunais vêm atuando em conjunto com o Banco Central, através do Sistema Bacen-Jud, para bloquear dinheiro nas contas dos devedores. Esse procedimento, que antes dependia de um ofício escrito e de semanas ou até meses para se ter uma resposta sobre o sucesso da tentativa, agora, não dura mais do que 24 horas.

O juiz da causa, do seu próprio gabinete, envia uma mensagem eletrônica ao Banco Central, pelo aludido programa, determinando a penhora de um determinado valor, nas contas bancárias de um determinado devedor. Imediatamente, o Banco Central repassa a ordem a todas as instituições financeiras, que cumprem a determinação incontinênti. Essa experiência foi muito proveitosa, tendo em vista que muitas dívidas foram rapidamente satisfeitas pela penhora online.

A Lei 11.382/06, que regulamenta a nova execução de título extrajudicial, incluiu no Código de Processo Civil três dispositivos diretamente ligados à relação entre o uso do meio eletrônico no processo e o princípio da utilidade. O artigo 655-A introduz no corpo do código a penhora online de dinheiro em depósitos ou aplicações financeiras, tal como já ocorria com o sistema Bacen-Jud, e o parágrafo 6º do artigo 659 permite a penhora online de qualquer bem móvel ou imóvel.

Evidentemente, a constrição de um veículo dependerá da interligação entre os sistemas do tribunal e do Detran do estado em que se encontra o veículo. O mesmo pode ser dito com relação à constrição de imóveis, que dependerá de interligação com o sistema dos cartórios de registro de imóveis.

Por fim, impende comentar que o artigo 689-A prevê a realização de leilão eletrônico, que é feito pela internet e aumenta as chances de arrematação, em virtude da possibilidade de se ter um significativo número de licitantes, os quais poderão realizar seus lances de qualquer lugar do planeta.

Esses novos procedimentos eletrônicos da execução de título executivo extrajudicial estão em total consonância com os ditames da Lei 11.419/06, uma vez que seus atos são praticados pela forma eletrônica, com certificação digital. Talvez num futuro próximo, os bens dos devedores serão rapidamente encontrados e bloqueados para a satisfação das dívidas, graças a esses mecanismos eletrônicos eficientes.

Afinal, a constrição e a expropriação pela forma eletrônica são muito mais ágeis, de modo que conferem maior efetividade ao processo, em respeito ao princípio da utilidade. Nesse sentido, os tribunais devem celebrar acordos com os órgãos da administração pública (Ex: Ministério da Fazenda, Juntas Comerciais, Cartórios, etc.) para a criação de sistemas de informática que acelerem a comunicação entre os mesmos, de modo a permitir o alcance rápido, seguro e proveitoso de informações úteis ao descobrimento da verdade, bem como para facilitar averbações, registros, alterações em cadastros, etc[27]..

Como visto, a informatização renderá bons resultados no que diz respeito ao princípio da utilidade. Por outro lado, o princípio da acessibilidade tem pontos críticos que devem ser observados, para evitar a sua violação. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[28] assenta que a acessibilidade pressupõe a existência de pessoas capazes de estar em juízo, sem óbice de natureza financeira, manejando adequadamente os instrumentos legais judiciais e extrajudiciais existentes, de sorte a possibilitar a efetivação dos seus direitos. Assim, é primordial que sejam eliminadas as dificuldades econômicas que impeçam ou dificultem o cidadão de litigar.

Um dos mecanismos adotados no Brasil foi a previsão constitucional de assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV), assim como a possibilidade de concessão do benefício da gratuidade de Justiça (Lei 1.060/50). A Defensoria Pública tem papel de destaque nesse campo e vem desempenhando suas funções de modo profícuo, apesar dos inúmeros obstáculos que tal classe enfrenta no dia-a-dia forense.

No entanto, com o advento da Lei 11.419/06, o custo do processo pode ser elevado de uma forma nova e diferente, a despeito da existência da Defensoria Pública e da possibilidade de se litigar com o benefício da gratuidade de Justiça. Isso porque o processo eletrônico depende do acesso à internet, através de banda larga; do uso de computador; de impressora e de scanner, entre outros equipamentos custosos. Ora, se os litigantes dependerão de advogados que tenham tais aparelhos e se é notório que grande parte dos advogados brasileiros vem passando por dificuldades financeiras, pode-se prever, nesse diapasão, uma barreira ao princípio da acessibilidade.

por Bruno Aronne

Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2008

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