O iceberg das cinquentinhas no mercado brasileiro

O iceberg das cinquentinhas no mercado brasileiro

Muitos criticam a venda de motos de 50cc, mas na realidade poucos sabem por que elas existem, continuam rodando, vendem muito e não sofrem com os efeitos da crise no mercado de duas rodas.

Mercado brasileiro de 50cc: emplacamento mostra apenas a ponta de um iceberg

Mercado brasileiro de 50cc: emplacamento mostra apenas a ponta de um iceberg

As motos de cinquenta cilindradas fazem parte da história das motos no mundo. Quase todos os grandes fabricantes mundiais tiveram motos de 50cc como moto de entrada seja na versão dois tempos ou na versão quatro tempos. Acontece que essas motocicletas ganharam popularidade em razão de dois fatores básicos – a necessidade de mobilidade urbana e suburbana atreladas ao poder aquisitivo de seus compradores.

A grande maioria dos compradores pertence as classes C, D e E. Muitos desses clientes que migram para as 50cc antes eram usuários de bicicletas ou usavam o jumento e, portanto precisavam de algo econômico e mais rápido. Levando-se em consideração a péssima estrutura e qualidade do transporte urbano nas grandes e médias cidades dos países pobres como também em países em desenvolvimento, caso do Brasil, este seria o cenário perfeito para aparecer um produto bom e barato.

Solução ou problema?

Solução ou problema?

No Brasil estas motos ganharam popularidade com a chegada dos produtos chineses que são famosos por venderem produtos baratos e muitas vezes de qualidade duvidosa. Na realidade o chinês fabrica produtos de toda qualidade e qualidade na China está diretamente relacionada a preço. Lá não existe o bom, bonito e barato – lá existe o ótimo, o bom, o ruim e o péssimo e cada um custa um preço.

Esta diferença de entendimento acabou gerando um sério problema. Os brasileiros importadores buscavam produtos “bons e baratos” e os chineses entendiam apenas o “barato” ou o “bom” e cada um tinha um preço bem diferente do outro. O brasileiro optava pelo “barato” achando que ele também poderia ser o “bom” e importava isso. Quando eram vendidos aqui davam todo tipo de problema e daí a fama e a culpa foi jogada nos chineses.

A China é a fábrica do mundo e cresce absurdamente a cada ano. Para se ter uma ideia, no ritmo de crescimento que a China anda, em breve precisaremos de dois planetas Terra para abastecer suas fábricas apenas de aço e concreto. Na China tudo se produz – desde produtos de marcas consagradas às famosas e conhecidas “chingling”.

No meio desse engodo os importadores descobriram um filão importante para vender motos de baixa cilindrada. O primeiro deles era a vontade das pessoas de não pagar IPVA e licenciamento. Aliado a isso um produto que gastasse pouco combustível e que fosse barato. O mercado queria algo assim, principalmente o que pertence as classes C, D e E que acabavam de entrar no maravilhoso mundo de consumo no Brasil. Ocorre que já estava muito bom, mas nada que esteja muito bom que não possa ficar excelente.

CTB com buracos

Uma brecha existente no Código de trânsito Brasileiro (CTB) deixava para os municípios a responsabilidade de realizar o emplacamento e a regulamentação da emissão da ACC – Autorização para Condução de Ciclomotores. Ocorre que, mesmo com o trânsito municipalizado a grande maioria dos municípios

Cópias? Sim, cópias! Mas boa parte fruto de acordos

Cópias? Sim, cópias! Mas boa parte fruto de acordos

brasileiros não mexe no assunto ‘50cc’ ou cinquentinhas mesmo sendo isso uma determinação.

Tais motos rodam sem serem incomodadas na grande maioria dos municípios brasileiros e não apenas do Nordeste do Brasil como muitos pensam. O Rio de Janeiro é um dos mercados que mais compram 50cc, além de mercados do Sul, Centro-Oeste e parte do Norte. Mas é no Nordeste que elas vendem cada vez mais.  Tais motos rodam livremente nas cidades e todos sabem que mesmo emplacadas não podem rodar em rodovias federais e estaduais. Aqui para que possam transitar sem serem incomodadas contam com outro esquema – o da propina. Se paga uma pontinha as autoridades de trânsito para trafegar entre cidades próximas em um raio de até 80 quilômetros.

Há várias razões para que estas motos rodem sem serem incomodadas. A primeira delas é política. Não há interesse em brigar com usuários/eleitores ao exigir o emplacamento e a ACC destas motos. Assim, tenta-se conviver pacificamente e de forma tolerante com essa brecha existente no CTB. Os DETRANs não podem fazer nada, por enquanto. Outra razão envolve a formação dos usuários de 50cc. Na sua maioria composta de pessoas com baixa ou nenhuma instrução, detentoras de poucos recursos e de idade avançada. Tal público, na sua maioria, não consegue pagar por uma ACC e muito menos emplacar a moto. Falta de dinheiro e também de instrução, já que para poder tirar uma CNH é necessário ser alfabetizado e muitos dos idosos ou usuários de meia idade não se encaixa neste perfil. Assim a coisa segue indefinida e solta.

Câmbio CVT e freios ABS!

Câmbio CVT e freios ABS!

Funcionando como um mercado à margem do controle das autoridades, os fabricantes e importadores continuam apostando na falta de interesse das prefeituras de regulamentar o setor. Por outro lado, quando os DEMUTRANs – Departamentos Municipais de Trânsito – resolvem apertar na fiscalização das motos acima de 50cc as vendas de 50cc crescem mais ainda. A razão é simples: só no Ceará, segundo estatísticas do próprio DETRAN, cerca de 300 mil pessoas dirigem veículos sem CNH e a maioria deles é de motociclistas na razão de 80% no interior.

Basta apertarem na fiscalização de CNH e na exigência do emplacamento para que estes clientes vendam suas motos e comprem 50cc que não precisam de nada disso. Não adianta nem mesmo os DETRANs implementarem a CNH Popular que custa cerca de 30% do valor de uma habilitação normal, pois a demanda é muito maior que os DETRANs conseguem dar conta. Além disso, ainda existe o problema da baixa instrução aliado em parte pela baixa capacidade financeira e a falta de financiamento da CNH.

Mercado Iceberg

Para piorar, a crise no mercado de duas rodas por conta da dificuldade de aprovação de crédito levou muitas lojas, distribuidores e lojistas multimarca a revenderem as cinquentinhas como forma de sobreviver e cobrir os prejuízos crescentes por conta da queda nas vendas de motos que compõem o mercado de “small bikes” (100/125/150cc). No meio deste cenário a venda das “cinquentinhas” se não está crescendo, vai muito melhor do que a de suas irmãs maiores. Pelos números oficiais da Abraciclo – Associação Brasileira de Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares – as 50cc (ciclomotores) representam pouco no mercado brasileiro e não ameaçam. Engano. Esse é um mercado “Iceberg”: a ponta que se vê é a menor parte do seu verdadeiro tamanho.

Opções para todos os gostos e bolsos

Opções para todos os gostos e bolsos

Uma análise mais atenta aos números divulgados pela Fenabrave e pelo Sincodiv-SP (Federação Nacional dos Distribuidores de Veículos e Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos, respectivamente) revela a verdadeira realidade. O que se divulga é apenas uma pequena parte da demanda real deste mercado. Estima-se que as motos de cinquenta cilindradas, se somados todos os importadores e fabricantes, ocuparia a terceira posição no ranking de venda de veículos motorizados de duas rodas. No entanto, para saber o real tamanho desse mercado é necessária uma apuração nem sempre fácil pois o nome adotado pelos importadores (fantasia) é diferente da marca (fabricante) que os produz na China e isso complica a busca e identificação destes veículos.

 

Segundo Francisco Trivelatto (Sincodiv-SP), em 2006, o volume de motos vendidas (importadas e nacionais) foi de 8,3 mil unidades, representando 3,9 vezes o total emplacado no ano. Já em 2011, houve 146 mil unidades vendidas, o equivalente a 12,9 vezes a soma dos emplacamentos da categoria no período. “Estimo que, em 2012, foram vendidas cerca de 200 mil unidades, enquanto que foram emplacadas apenas 15.857 unidades de motos de 50 cc”, demonstra o executivo. Ainda em estimativa, mantida a média de emplacamentos em relação ao volume vendido, em 2013 foram vendidas 160 mil motinhos de 50cc.

Sem crise

E quem acha que este mercado diminuiu no mesmo ritmo do restante do segmento de motocicletas no Brasil engana-se novamente. Mesmo com o aumento do IPI por parte do governo na ordem de 35%, os efeitos sequer foram percebidos e boa parte dos importadores absorveu parte ou o aumento todo. A gordura na margem de contribuição dessas motos ultrapassa os 40% coisa quase impossível de se obter em motos de 100 a 300 cilindradas que fica entre 9% e 25%.

Preços atraentes para quem depende de um péssimo sistema de transporte público

Preços atraentes para quem depende de um péssimo sistema de transporte público

Quem vende cinquentinhas não sofre com problemas relativos à falta de financiamento e muito menos com inadimplência alta. Outra característica desse mercado é a venda à vista, pelo cartão de crédito, crédito consignado para aposentados e até linhas de crédito particulares. Sim, é isso mesmo, fazer negócio do jeito que se fazia antigamente, com anotação na cadernetinha, pois na maioria das cidades de interior todo mundo se conhece e vender a crédito para um público que é fiel pagador é uma prática muito comum, principalmente no Nordeste brasileiro. É fácil vender e mais fácil ainda receber e as margens são boas. Ou seja – é um excelente negócio para ambas as partes.

É fácil importar!

Apesar de haver uma certa desconfiança de que há muita operação de importação feita por meios ilícitos, até agora continua sendo apenas desconfiança. Até porque o processo de importação é bem fácil, conforme revela um destes “players” do mercado nordestino, que prefere não se revelar. Funciona assim. O investidor vai à China, escolhe um fabricante e os modelos de moto que lhe interessa dentre milhares de modelos disponíveis. Acerta o preço geralemtne entre 450 e 600 dólares, paga o valor à vista e espera dois meses para a chegada das motos no porto.

Mercado sem crise.... e com regras próprias

Mercado sem crise…. e com regras próprias

As motos chegam aqui no porto, recolhe-se os importos e as motos já saem para as lojas para serem vendidas em reais por valores entre R$ 2.900,00 e R$ 4.200,00. Alguns fabricantes que possuem operação em zonas incentivadas (Manaus) recebem estes ciclomotores desmontados e os “nacionalizam” seguindo o processo PPB da Suframa (Processo Produtivo Básico), e se beneficiam dos impostos mais baixos.

Antigamente as motos tinham problemas de pós-venda, acabamento e durabilidade. Hoje com a crescente concorrência entre as marcas e a crescente e elevada exigência dos clientes por cinquentinhas de melhor qualidade fez com que a coisa mudasse de figura. Há cinquentinhas básicas com câmbio manual, roda raiada, freio tambor e preço abaixo dos R$ 3.200,00. Por outro lado o mercado está se sofisticando. Cinquentinhas com câmbio semi-automático, freios a disco e CVT estão ficando cada vez mais populares. Há motos com dispositivos que recebem pendrive e com caixas de som embutidas no guidão. Outras chegam à sofisticação de trazerem câmbio CVT junto com freios ABS apenas na roda dianteira que não ultrapassam a casa dos R$ 4.200,00.

Mas não basta para o usuário de “cinquentinha” que a moto tenha muita tecnologia. Ela precisa ser parecida com uma moto de maior cilindrada e é aqui que as cópias e as compras de moldes liberados por grandes fabricantes acontecem. Para baratear custos com a produção os grandes fabricantes fecham parcerias com os chineses na forma de joint-venture. Essas parcerias, diferentemente do outsourcing ou OEM, não envolvem necessariamente a transferência de tecnologia ou liberação de patente. Porém o sistema Joint-Venture prevê essa possibilidade e isso depende de como cada contrato é costurado, de transferir tecnologia, patentes e até a venda de moldes.

Dessa forma muitas das cinquentinhas que rodam no Brasil são cópias idênticas de modelos de cilindrada superiores comercializadas no Brasil. Essa velocidade de inovação está acontecendo cada vez em menor tempo. É perfeitamente possível hoje, no Brasil, ver cinquentinhas usando moldes e adotando modelos que recentemente – digo menos de 90 dias – deixaram de ser comercializados ou foram substituídos por um novo modelo. Se você afirmar que são cópias está certo, mas a grande maioria é cópia autorizada. E não se engane – no pós-guerra muitos fabricantes consagrados copiaram projetos de motos alemãs – as melhores à época. Japão e Estados Unidos já tiveram seus dias de China.

Cópias japonesas a preços paraguaios

O pós-venda também melhorou. Os importadores entenderam que para continuar vendendo neste mercado precisariam ter peças de reposição em grande quantidade. Antes tais motos eram vendidas sem nenhuma garantia. Hoje a maioria dos fabricantes oferece desde a garantia de dois anos a garantia estendida. Ainda existem marcas que garantem apenas motor e câmbio por seis meses e o restante fica por conta do revendedor. Se o revendedor quer dar mais seis meses é por conta dele.

Mesmo assim vale a pena. O revendedor compra as peças dos mesmos importadores a preços paraguaios e esta prática contribuiu para aumentarem as suas receitas. Para isso criaram empresas de importação de peças – as conhecidas “parts” alguma coisa – para alimentar o mercado paralelo. Assim, o mercado de cinquentinhas passa a ser abastecido também pelas revendedoras de motopeças que compram além de peças para 50cc, motopeças para outros tipos de motos comercializadas aqui no Brasil e que, na sua maioria, são fabricadas ou montadas aqui por grandes montadoras. Ou seja é um mercado de centenas de milhões de reais.

Cartas na manga

Quem pensa que este mercado vai decrescer, engana-se mais uma vez. Já existe uma estratégia guardada na manga pelos importadores de 50cc, para o acaso de os DEMUTRANs resolverem exigir ACC e emplacamento ou que mesmo os DETRANs – por intermédio de algum projeto de lei – tornem-se os controladores deste mercado. Basta embutir o custo do emplacamento e da ACC na venda de tais veículos. De qualquer forma, os lucros obtidos com a venda de cinquentinhas podem servir por conta do volume de vendas que elas geram, como gás extra que evitaria tirar o fôlego desse mercado.

À margem da lei, consumidores não se preocupam com segurança

À margem da lei, consumidores não se preocupam com segurança

A ausência do Estado e a vista grossa dos municípios deixou este mercado esquecido e assim ele criou suas próprias regras e defesas e hoje anda sozinho. Ele cresceu e continua crescendo e não sente na pele a crise. Mais que isso, conseguiu expandir-se pelo setor de motopeças como um novo negócio atrelado a venda dessas motos. Portanto, reclamar de falta de pós-venda e de produtos inadequados em termos de segurança, a cada dia que passa, está virando coisa do passado. Estas motos chegam com recursos eletrônicos interessantes como alarmes, partidas no controle remoto e até com ABS. Tudo para impressionar o cliente que quer comprar um produto que se pareça cada vez mais com uma moto de maior cilindrada.

Encontrar o fio da meada neste bolo de fios é o mesmo que encontrar uma agulha em um palheiro. Mas, supondo que resolvam regulamentar, os importadores mudam de estratégia e viram fabricantes e assim conseguem os mesmos incentivos fiscais das “small bikes” e esta diferença deverá proporcionar a absorção dos custos com emplacamento e a emissão da ACC sem mexer muito no preço final.

Acidentes e roubos

As estatísticas de acidentes com motos no Brasil são incompletas e não são fornecidas de forma segmentada por cilindrada e muito menos separada pelo fator que o causou. Dessa forma, os acidentes com motos de 50cc entram no escopo das estatísticas de acidentes com motos e são atendidos da mesma forma que uma moto que paga o DPVAT.

Ocorre que, mesmo sendo uma praga no Nordeste Brasileiro, estas motos figuram pouco nas estatísticas de acidentes com mortes até mesmo por conta da velocidade que conseguem chegar – que geralmente não passa dos 50 km/h. Morre-se mais em “small bikes” do que em cinquentinhas. Mas os traumas gerados são os mesmos e até piores, pois grande parte dos seus usuários acredita ser dispensável o uso do capacete o que também é ignorado por boa parte dos municípios – mesmo aqueles com trânsito municipalizado.

Outro problema consiste na facilidade de roubo dessas motos. Como não as emplacam simplesmente não existem no sistema RENAVAM – Registro Nacional de Veículos Automotores. Daí, se já é muito difícil encontrar uma small bike, achar uma cinquentinha é mais difícil ainda. Mas até para isso tem jeito. Para ajudar a proteger o usuário, os revendedores fazem os chamados combos com alarmes e até com recompensas para policiais que recolhem motos com chassi adulterado ou nota fiscal fraudada (o único documento dessas motos é a nota fiscal). Outro problema existente é com relação as infrações de trânsito. Sem placas elas não podem ser multadas e quando são recolhidas paga-se uma multa, a diária do depósito e logo em seguida voltam às ruas. Algo parecido com o Estatuto do Menor.

Resumo

A constatação é simples. No interior que não tem transporte público, onde é deficiente a fiscalização e não existe interesse político na regulamentação das cinquentinhas esta moto vai continuar sendo vendida e desta vez com a inclusão do público adolescente que a cada dia que passa cresce cada vez mais como usuários de tais motos – dadas de presente pelos próprios pais – para irem à escola e encontrar-se com os amigos no final do dia.

Nas cidades elas continuarão sendo uma alternativa barata em relação ao transporte público e servem como poderosa ferramenta para profissionais liberais tipo encanadores, pintores, eletricistas e até mecânicos de motos. O mercado das motos de 50cc é auto-protegido, auto-regulamentado, tem vida própria e, principalmente, possui grande proteção política – a qual é essencial para que continue do jeito que está por mais alguns bons anos.

E a julgar pela velocidade que as coisas andam neste nosso País, com certeza a velocidade das cinquentinhas, mesmo não passando dos 50 km/h, será ainda muito superior à velocidade de resposta da classe política. E exatamente por isso elas vão continuar como o mosquito da dengue – entra ano e sai ano – por mais que se tente fazer alguma coisa o risco de epidemia vai continuar.

Fonte: Fenabrave, Sincodiv-Sp, Francisco Trivelatto, Abraciclo, Detran

Redação Geral

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